As Lições de Malkovich

Há alguns anos, venho falando em minhas salas de aula sobre a dificuldade de reconhecer as reais intenções por trás das ações das empresas. Tudo porque, quando digo “real”, imagino encontrar a verdade por meio de provas, o que nunca é inteiramente possível nesses casos. Estamos sempre reféns de alguma percepção que envolve certo juízo sobre a forma como uma organização age. Pergunto-me: “Será verdadeira a afirmação desta empresa, quando posiciona-se como ambientalmente responsável?”. Sim, tenho como provar que ela investe em medidas de preservação ambiental, tanto quanto posso ver seus esforços para controlar seus mecanismos, consolidar e comparar seus resultados a partir de indicadores, à busca de melhorar sua forma de agir em relação aos ecossistemas. Mas posso ter certeza de que as intenções são genuínas e independentes, por exemplo, de conjunturas sociais, ou de pressões de acionistas, ou talvez de modismos? Tenho como identificar a atuação de uma organização de maneira isolada do contexto, ou conhecer sua verdadeira identidade olhando apenas suas atividades, calculando o montante dos investimentos em programas ou estratégias?

Antes de responder – e é óbvia a negativa –, preciso reconhecer que esta discussão é sempre um pouco infrutífera, se levamos em consideração a natureza das organizações. Ora, se elas são compostas por indivíduos e não é possível “entrar na cabeça” das pessoas para conhecer sua forma de pensar, então nunca será possível conhecer a “verdade última do pensamento de uma empresa” (troquem a expressão “pensamento” por “posicionamento”, se quiserem). Tudo o que temos não são provas, mas indícios de que as atitudes são coerentes ou incoerentes, verdadeiras ou falsas, sempre numa visão limitada da realidade. Eis que se apresenta uma incrível impossibilidade de chegar à essência do que elas são. E isto daria um filme.

O problema é que já fizeram este filme, ao menos num exercício de imaginação ao contrário do que foi proposto no parágrafo anterior e sem qualquer relação evidente com o universo corporativo. Em “Quero ser John Malkovich”, o personagem de outro John (Cusack) encontra, em um escritório comercial, uma passagem secreta que leva para dentro da cabeça do ator hollywoodiano de tantos filmes interessantes – Ligações Perigosas, A Sombra do Vampiro, Joana D’Arc, entre outros. Por alguns minutos, quem se aventura por aquele portal vê o que John Malkovich vê, sente o que Malkovich sente, vive o que Malkovich vive. Na ficção, é uma experiência única, fantástica. Mas, na realidade, sabemos que é impossível, até quando a convivência com um indivíduo poderia supor um conhecimento amplo sobre suas posições, sua forma de ser e perceber o mundo.

Pois sem esta hipótese, nunca será possível afirmar categoricamente, desprovido do mínimo receio de errar, que uma organização não é o que diz ser (ou o contrário). Sempre será preciso considerar a perspectiva de quem vê, o maior ou menor acesso à informação sobre ela e o que é feito para tornar suas práticas conhecidas, para determinar o que é sua “realidade” ou sua real identidade.

É nessa esfera que inserem os bons profissionais de assessoria de imprensa. É com esta visão que gostaria que meus alunos e ex-alunos de Relações Públicas atuassem, na hora de estabelecer e manter contato com a imprensa: se não é possível chegar à essência do que suas empresas são, então trabalhemos para chegar o mais perto possível desta verdade. Para além disso, façamos com que os veículos obtenham as informações mais próximas da realidade percebida, sem utilizar subterfúgios para esconder os aspectos negativos, tratando com clareza dos fatos que envolvem a sua administração, alinhados com o planejamento de comunicação integrada (se ele existir). Assim, é possível supor que o bom trabalho de um assessor irá contribuir para a construção de uma real identidade corporativa. Esse tema nos leva a outra lição de Malkovich.

O filme agora se chama “Totalmente Kubrick” (Colour Me Kubrick), no qual Malkovich interpreta o papel de um personagem que se faz passar pelo celebrado diretor Stanley Kubrick. Baseado numa história real, o roteiro apresenta uma série de situações nas quais o farsante ilude as pessoas, levando-as a pensar que estão diante de um ícone, e que interagem com ele. Está em questão o deslocamento de identidades, o falseamento e, acima de tudo, a incrível credulidade humana ante o status social de alguém célebre.

É sabido que até hoje a viúva de Kubrick recebe cartas de pessoas que teriam conhecido o impostor, julgando ter mantido contato com o seu falecido marido. Porém, se os indivíduos podem ser facilmente enganados como sugere o enredo, os novos tempos indicam que é cada vez menor a vida útil deste tipo de mentira, o que nos leva a especular sobre os possíveis (prováveis) danos de um posicionamento assim.

Afinal, se a identidade não é lá coisa muito fácil de ser definida por quem produz comunicação profissional em nome de uma empresa, que dirá pelos públicos com os quais buscamos nos relacionar, levando-se em conta a hipotética existência de organizações com intenções semelhantes à do dublê de diretor.

Pelo bem de uma condução profissional em termos de assessoria de imprensa, idem às necessidades do veículos de comunicação, e sabendo ser árdua a tarefa de identificar uma organização, tomemos como exemplo os dois filmes de Malkovich. Vamos à busca da verdade. Sem máscaras, se chega ao happy end.

 

 

Fonte: Artigo publicado originalmente no portal Nós da Comunicação


Professor universitário (Uerj e FACHA) e escritor. Nas horas vagas, músico. Aqui, um pouco de tudo: música, literatura, futebol, política e desimportâncias.

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